A presidente Dilma Rousseff, reunida com o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, anunciou na sexta-feira, 10, uma parceria que pode tornar o Marco Civil da Internet uma letra morta ao indicar o caminho que ela pretende seguir em relação à regulamentação da neutralidade da rede que, resumindo, periga ser o de vetá-la completamente em prol de iniciativas danosas ao consumidor e liberar a prática do Zero Rating.
Trata-se de um acordo que, do ponto de vista do Facebook, visa garantir mercado e mesmo monopolizar o mercado e não o de efetivamente levar internet a todos e sanar o imenso problema da exclusão digital.
Em artigo para o Brasil Post, o advogado e pesquisador Pedro Ramos definiu com precisão o Zero Rating:
Zero-rating refere-se a uma série de estratégias comerciais desenvolvidas por operadoras em parceria com provedores de aplicações e que visam oferecer gratuidade no tráfego de dados para determinada aplicação e serviço específico. Ao contrário do mercado de banda larga, é comum que operadoras ofereçam a seus usuários planos de o à internet com limites de volume de tráfego mensais – por exemplo, em um plano de 100 MB, o usuário somente poderá utilizar internet 3G em seu dispositivo móvel até o limite de 100 megabytes de tráfego e por mês. Por meio de estratégias de zero-rating, operadoras elegem determinadas aplicações e sites cujo tráfego gerado não será contabilizado para esses limites, de forma que o usuário poderá ar esse site ou aplicação ilimitadamente, independentemente da contratação de um plano específico de o à internet.
Internet grátis?
Dilma e Zuckerberg firmaram acordo para trazer ao Brasil o projeto Internet.org, que já funciona em países como Guatemala, Panamá, Gana, Quênia, dentre outros, ou ao menos uma versão muito semelhante do projeto que, em linhas gerais permite o gratuito via celular a alguns serviços básicos (ou considerados básicos pelo Facebook e por empresas de telefonia e provedores parceiros), como a Wikipedia e, obviamente, o próprio Facebook.
Em outras palavras, a “internet grátis” que Dilma e Zuckerberg pretendem trazer ao País nada mais é que uma internet pela metade, restrita a alguns serviços escolhidos por empresários interessados, e não a internet em si, com todo seu potencial, livre e irrestrita. Trata-se de um projeto que visa controlar o o dos indivíduos, liberando apenas sites escolhidos e aplicações definidas por terceiros, impedindo o o realmente livre e reduzindo a internet que uma parte considerável do mundo a – em especial os mais pobres – um ambiente controlado e .
É verdade que não existe almoço grátis, para usar o Facebook nós “pagamos” com nossos dados – dados pessoais, gostos, preferências, etc – que são revendidos a empresas para que estas nos enfiem propaganda e tenham lucros, porém o Internet.org vai além, não apenas cobrando por nossos dados, mas chegando ao ponto de nos impedir de ar efetivamente a internet, nos deixando ilhados dentro do Facebook (e consequentemente aumentando seus lucros), e com a possibilidade de ar apenas os sites e serviços permitidos pelo Facebook e seus parceiros.
O acordo entre Dilma e Zuckerberg, porém, tem um diferencial em relação modelo adotado no Internet.org que o fato de não ser voltado apenas para a telefonia móvel, mas visa também investimento em infra-estrutura, conexões físicas via PC, o computador tradicional. Na questão do Zero Rating e da limitação da navegação a sites escolhidos não se sabe como será o programa – pese a quase certeza de que ao menos na internet móvel a limitação de o será efetiva –, mas é provável que não destoe do projeto original já aplicado com, pensa o Facebook, sucesso.
O futuro com zero rating e sem neutralidade é o de provedores não cobrarem mais pela velocidade com que você conecta, mas sim pelo conteúdo ado e pelos aplicativos ou aplicações.
Um exemplo: é possível imaginar que uma empresa cobre não por 2 megas de velocidade ou 6 megas e com essas velocidades você em tese pode ar do seu blog pessoal ao Youtube ou Netflix, sem discriminação, mas e a cobrar um valor para você ar seu blog e um valor muito mais alto para que você possa assistir a um vídeo no Youtube. Ou ainda pode permitir o o mais rápido a um site parceiro e diminuir a velocidade de um site que não pague nada ao provedor.
A internet é como uma estrada, não importa se você vai mais devagar ou mais rápido, no fim das contas todos am pelos mesmos lugares e chegam a mesmo lugar, apenas em tempo diferente. Com o zero rating todos serão obrigados a pagar pedágio, mas quem pagar mais pedágio irá mais longe, enquanto você ficará pelo caminho, impedido de ir adiante.
Isso significa que a internet ficará não só mais cara, mas também que ficará elitizada.
Neutralidade e os falsos discursos
A neutralidade da rede como consta do Marco Civil – e que também é defendida pelo FCC americano e pela União Europeia – veda expressamente a discriminação de pacotes e, obviamente, veda a prática de zero rating, que é justamente discriminar serviços e aplicativos/aplicações – e que já existe no Brasil e permanecerá existindo até que o marco civil seja totalmente regulado e da forma como ativistas e especialistas propõem.
As práticas atuais de diversas empresas de telefonia brasileiras de, por exemplo, permitir o o ao Whatsapp ou ao Facebook, mas vetar o o ou cobrar pela conexão que saia desses aplicativos (clicar em um link recebido no Whatsapp que direcione ao navegador, por exemplo e em alguns casos até mesmo assistir a um vídeo dentro do aplicativo do Facebook que consome mais dados e, logo, é cobrado) já é algo comum, e tal prática é exatamente o zero rating. Porém, ser comum não torna necessariamente algo legal ou, ao menos, ético ou saudável para o funcionamento da internet enquanto uma rede distribuída e livre.
O discurso de muitos é de que é melhor uma internet limitada para pobres do que nenhuma internet e optar por uma das duas opções é realmente o caminho mais fácil. Mas nós não precisamos optar por estas duas imposições que se am por opções legítimas, não precisamos e nem devemos aceitar viver em um jardim murado, ou melhor, impor um jardim murado para parte da população enquanto nós que podemos pagar continuamos a aproveitar a internet em toda sua plenitude.
Em alguns aspectos a iniciativa de Dilma lembra a do fracassado PNBL, onde o governo em linhas gerais lavava as mãos e entregava às empresas de telecomunicação o trabalho de construir a infra-estrutura necessária para levar internet a todo o o país por um preço enganosamente baixo em troca de incentivos fiscais. Em relação ao Marco Civil em si, o acordo prenuncia uma péssima regulamentação do artigo sobre a neutralidade da rede no marco civil, colocando em perigo o o dos brasileiros – de todos e todas – à internet, abrindo as portas para a criação de classes dentro da internet de acordo com o poder aquisitivo de cada indivíduo para pagar por os .
Diante deste fracasso o governo resolveu tomar um atalho que, no fim, viola os direitos dos brasileiros. É uma tentativa torpe de mascarar a incompetência do governo na democratização da internet e também sua falta de interesse no processo, além de deixar claro o conflito de interesses de políticos com empresas de telecomunicação que financiam suas campanhas e que são as grandes interessadas no zero rating.
O discurso hoje é de que a internet é cara porque nós consumimos muitos dados, porque serviços como Netflix ou mesmo o de torrents acaba sobrecarregando o sistema e que apenas uma pequena parte dos usuários pode ser considerada “heavy ” e que esta minoria prejudica a maioria. Estamos diante de meias verdades. De fato existem os heavy s, mas há gargalos na conexão e problemas técnicos exclusivamente pela falta de interesse das empresas em investir em infraestrutura e prover uma melhor conexão a todos. As empresas preferem trabalhar num mundo de falsa escassez, em que precisam cobrar mais caro para o o à internet simulando um ambiente de capitalismo selvagem onde precisamos competir ferozmente por recursos escassos.
Baseado nestas meias verdades (e meias mentiras) as empresas impõem sua voz – e seu peso econômico – ao Estado que legisla a seu favor, privilegiando medidas que não atacam o problema da falta de infra estrutura e da falta de vontade em garantir um serviço minimamente decente. Não faz sentido em usar uma desculpa estrutural que não existe para basicamente censurar a internet de milhões de pessoas. Se é fato que a maioria não baixa torrents, por exemplo, ou assiste vídeos via streaming, todos tem a capacidade e o direito de fazê-lo. Não é porque não fazem que o direito deve ser cortado – para todos.
Neutralidade e o capitalismo
O irônico, aliás, é que a neutralidade da rede e a garantia de qualidade para todos no o à internet é, também, o que move o capitalismo (online).
A Neutralidade da Rede poderia ser encarada como ao mesmo tempo socialista e capitalista (ou ao menos liberal) e não há nenhuma contradição nisso. Ao mesmo tempo em que ela garante o o igualitário a todos – ou ao menos a todos os conteúdos, já que a discriminação baseada em velocidade de conexão é um fato –, é esta igualdade que permite competição entre empresas. Sem a neutralidade da rede não teríamos tido um Google ou mesmo o Facebook, que começaram pequenos e por poder serem ados por todos, cresceram e se tornaram potências em suas respectivas áreas.
Em outras palavras, o fim da neutralidade da rede e o Zero Rating destroem as bases da própria internet e da inovação (e competição), impedindo que novas empresas disputem um lugar ao sol e mesmo desbanquem os atuais líderes do mercado – ou mesmo que devido à competição os líderes inovem e melhores. Ao mesmo tempo o usuário se beneficia não apenas da inovação, mas do o livre a todo o potencial da rede.
Como explicou o professor Sérgio Amadeu, um dos grandes especialistas no tema:
[…] a prática do Facebook é de domínio da rede pelo seu grande poder econômico. Sem tragar a web para o interior de suas muralhas, o Facebook já é a segunda audiência da internet no mundo. Com o zero rating em países pobres, o Facebook pretende trazer inúmeros serviços e conteúdos hoje disponíveis na web para dentro de sua plataforma. Essa concentração dará mais o à sua rede, o que trará ainda mais poder econômico para a corporação de Zuckerberg.
O artigo do professor Amadeu merece ser lido ainda pela abordagem feita à luz do Marco Civil já aprovado que, em tese, colocaria o acordo feito por Dilma na ilegalidade e, além disso, num eventual cenário de aplicação do acordo teríamos uma imensa brecha em nossa privacidade, com empresas podendo violar nossos dados e poder mesmo ter o à nossa navegação. O problema, ainda, é que tal ilegalidade teria de ser disputada em longas batalhas judiciais e políticas, mas as bases para derrotar a Neutralidade da Rede já estariam fincadas.
Não apenas especialistas e ativistas notaram os perigos do fim da neutralidade e da imposição do zero-rating, mas várias empresas (algumas que chegaram mesmo a ser parceiros do Facebook no projeto Internet.org, como as indiana NDTV e Times Group) já começaram a deixar o projeto ao entenderem a necessidade do respeito ao menos à livre competição que só a internet livre pode garantir. A empresa indiana Cleartrip declarou em um tuíte:
“Hora de traçar a linha na areia, Cleartrip está saindo do Internet.org e defendendo a Neutralidade da Rede #NetNeutrality
Com o projeto Internet.org ou seu variante acordado por Dilma, os mais pobres não poderão ter o aos mesmos sites e serviços que os mais ricos, não poderão ter o mesmo o ao conhecimento e ficarão s ao que provedores, empresas de telecomunicação e o governo permitirem o o. Se o provedor decidir que a Wikipedia não faz mais parte do pacote básico, azar o seu, pague um melhor ou fique sem Wikipedia – e isto vale para qualquer site ou serviço.
Projetos como o Internet.org parecem bonitos, filantrópicos, na teoria, mas abrem as portas para um controle sem precedentes da internet e também abrem um precedente perigoso, colocando em risco a internet em si.
[Agradeço a João Carlos Caribé e Marco Gomes pelas ideias, links e textos trocados.]
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Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto), ativista dos direitos humanos e pela liberdade na rede.