
Socioambientalista Thiago Ávila, durante aula pública Pró-Palestina (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)
O debate acerca da questão palestina reacendeu nesta última semana após a Marinha israelense interceptar, em águas internacionais, a embarcação Madleen – conhecida como “Flotilha da Liberdade” – que transportava ajuda humanitária destinada à Faixa de Gaza. A ação ocorreu a cerca de 100 km da costa de Gaza, em uma região onde Israel mantém um bloqueio naval desde 2007, justificado por questões de segurança, mas amplamente criticado por organizações de direitos humanos por seu impacto humanitário. A embarcação carregava suprimentos médicos, alimentos e materiais de construção, além de contar com 12 ativistas a bordo, incluindo parlamentares e observadores internacionais. Após a interceptação, os ageiros foram detidos e seriam deportados para seus países de origem.
Entre os detidos está o deputado brasileiro Thiago Ávila (PV-DF), conhecido por seu ativismo em direitos humanos e causas ambientais. Ávila integrava uma missão parlamentar internacional organizada pela European Campaign to End the Siege on Gaza (ECESG), que buscava documentar violações de direitos humanos na Cisjordânia e no bloqueio a Gaza. Em um vídeo gravado momentos antes da deportação, o parlamentar afirmou: “Israel não quer que o mundo veja o apartheid em prática. Meu crime foi tentar entrar como observador, mas eles só aceitam turistas e embaixadores alinhados. Enquanto o mundo silencia, Gaza sofre com falta de remédios, água potável e eletricidade”.
A deportação ocorre semanas após o Brasil votar a favor da adesão plena da Palestina como Estado-membro da ONU: uma decisão simbólica, mas que não alterou a realidade do conflito, já que o país mantém relações econômicas e militares com Israel. Para Iara Pietricovsky, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), a postura do governo brasileiro é contraditória: “A deportação de Ávila mostra o limite da hipocrisia: o governo condena a ocupação em discursos, mas não protege seus cidadãos que denunciam in loco. Enquanto isso, empresas brasileiras seguem vendendo armas e tecnologia de vigilância a Israel”.
Outro nome de peso envolvido no conflito é a ativista sueca Greta Thunberg, símbolo global da luta climática, que recentemente se manifestou em apoio à causa palestina. Em um post no X (antigo Twitter), ela escreveu: “A crise climática e a ocupação de terras estão interligadas – ambas são frutos do colonialismo e da exploração. Enquanto Gaza sofre com bombardeios e falta de água, o mundo finge não ver. Não há justiça climática sem justiça para a Palestina”.
Sua declaração gerou polêmica, com críticas de grupos pró-Israel, que a acusaram de “simplificar um conflito complexo”. No entanto, sua influência trouxe ainda mais visibilidade internacional ao caso da Flotilha da Liberdade.
Porém, o fato muitas vezes subnotificado é que a repressão de ativistas como Thunberg e Ávila é parte de um fenômeno mais amplo: a criminalização transnacional das resistências, a tentativa dos Estados e corporações de sufocar as vozes que denunciam a aliança perversa entre colonialismo, ecocídio e capitalismo global.
Em tempos de catástrofe ecológica e colapso político, os que ousam apontar os verdadeiros culpados – sejam eles Estados colonialistas, empresas petroleiras ou lobbies armamentistas – tornam-se alvos de silenciamento. Denunciar o genocídio em Gaza ou o desmatamento da Amazônia não é mais apenas um ato político: é um risco existencial.
Desde outubro de 2023, a Faixa de Gaza se converteu num laboratório de destruição total. A ocupação israelense, longe de se limitar à violência militar, atingiu novos patamares de crueldade ao promover deliberadamente a devastação ambiental como arma de guerra: bombardeio de reservas hídricas, destruição de plantações, envenenamento do solo e colapso do sistema de saneamento básico. Essa estratégia revela uma lógica necropolítica: não basta matar as pessoas, é preciso tornar inviável a vida futura.
O termo “ecocídio”, ainda em disputa no campo jurídico internacional, encontra em Gaza seu significado mais brutal. A guerra, aqui, não se restringe ao território ou à soberania: ela incide sobre a própria possibilidade de existência, presente e futura. Como bem apontam estudiosos da justiça climática, a Palestina vive não apenas sob um regime de apartheid, mas sob uma economia de extermínio, em que o colonialismo não visa mais extrair, mas eliminar.
Não é coincidência que Greta Thunberg, ao associar sua militância climática à causa palestina, tenha se tornado alvo da máquina de repressão europeia. Quando a juventude branca do Norte global se recusa a repetir os mantras do “ambientalismo de mercado” e começa a denunciar o neocolonialismo climático, o sistema reage com fúria. A solidariedade com a Palestina rompe o pacto de silêncio que sustenta a hipocrisia ocidental: um pacto onde a destruição ambiental é tolerada: desde que seja longe, nos corpos racializados, nos povos do Sul.
Greta foi acusada de antissemita, extremista, desestabilizadora. Sua prisão teve menos a ver com leis violadas e mais com narrativas ameaçadas. O mesmo se aplica a Thiago Ávila. Ambos representam um tipo de ativismo que assusta o poder: aquele que conecta a luta climática à justiça social, à autodeterminação dos povos e ao anticolonialismo.
A intercepção da embarcação revela uma tendência crescente de repressão articulada em escala internacional. Não se trata apenas de atos isolados, mas de um regime global de controle que criminaliza a solidariedade e transforma direitos em ameaças. Em vários países, o ativismo está sendo redefinido como “terrorismo doméstico”. Protestos pacíficos são enquadrados como distúrbios, vide o presidente dos Estados Unidos Donald Trump acionar a Guarda Nacional para combater manifestantes em Los Angeles. Boicotes são proibidos. A liberdade de expressão torna-se um privilégio condicionado à obediência ideológica.
Por trás disso está o temor das elites globais de que as lutas locais se transformem em insurgências planetárias. Quando ativistas indígenas, palestinos, afrodescendentes e jovens do Norte global começam a falar a mesma língua – a da justiça climática interseccional –, o poder treme. Porque essas vozes não apenas denunciam, mas propõem outro mundo: um mundo onde o lucro não vale mais do que a vida.
O sequestro das consciências, operado pelos grandes meios de comunicação, tenta transformar a Palestina em uma “questão complexa” e os ativistas em “radicais fora da realidade”. Mas a realidade é simples: há um povo sendo massacrado, há ativistas sendo perseguidos, há um planeta sendo destruído por interesses econômicos inconfessáveis. E há também uma juventude global que se recusa a assistir em silêncio.
A justiça climática, para ser de fato justa, precisa ser anticolonial. Não se pode combater as mudanças climáticas sem enfrentar o racismo, o patriarcado e o imperialismo. Não há neutralidade possível diante de genocídios. O silêncio, nesses casos, não é prudência, é cumplicidade.
A prisão de – e aqui trago todos os seus nomes para que nunca esquecemos quem esteve do lado do povo palestino: Yasemin Acar, Baptiste Andre, Thiago Avila, Omar Faiad, Rima Hassan, Pascal Maurieras, Yanis Mhamdi, Şuayb Ordu, Greta Thunberg, Sergio Toribio, Marco Van Rennes e Reva Viard – não é apenas uma agressão a indivíduos, mas um sinal de alerta para toda uma geração. O que está sendo atacado não são apenas corpos, mas símbolos, ideias, articulações. Está em curso uma tentativa de desmobilização global das resistências que ousam questionar o poder em sua forma mais brutal: o poder de destruir vidas em nome do lucro.
Resistir, nesse contexto, é também reinventar o internacionalismo. É transformar a dor coletiva em força organizada, é apoiar campanhas como o BDS, é exigir liberdade para os presos políticos, é recusar a normalização do genocídio em Gaza, da mineração predatória no Brasil, da violência contra os que sonham.
Referências consultadas 1z6k5
Naomi Klein. On Fire: The Burning Case for a Green New Deal.
Ilan Pappé. A História da Palestina Moderna.
Vandana Shiva. Earth Democracy.
Angela Davis. Freedom is a Constant Struggle.
Boaventura de Sousa Santos. A Cruel Pedagogia do Vírus.
Relatórios da ONU sobre a destruição ambiental em Gaza.
Declarações públicas de Greta Thunberg e Thiago Ávila (2024).
Observatórios de Justiça Climática e Direitos Humanos.
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Tais Alfredo é estudante de Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).