Sexta-feira, 13 de junho de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1342

“Sul global” e as designações que nos desafiam em uma geopolítica líquida 3a5135

(Foto: Tima Miroshnichenko/Pexels)

O “Sul global” ou “Sul profundo”, do ponto de vista conceitual, não exigia maiores definições, até o discurso disruptivo do atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de 20 de janeiro de 2025. De acordo com o jornalista norte-americano Fareed Zakaria, a fratura mais significativa reivindicada nesse discurso é a de um retorno ao mundo de ontem, à “realpolitik do século XIX […] definida pela lógica de ambições e interesses” bem precisos [2].

“Nada é tão enganoso quanto a palavra”, escreveu Victor Hugo [3].

Como compreender o surgimento dessa expressão “Sul global”, designação que para alguns parecia tão óbvia até 2024, e que agora corre o risco de perder significado e conteúdo por um período indefinido? A expressão correspondia ao que parecia nomear? Ou fazia parte de um discurso com finalidade mais mobilizadora e engajada do que científica?

O “Sul global” – ou “Sul profundo” – é um conceito geopolítico que se difundiu nos últimos anos no mundo das associações, do jornalismo, da academia e dos partidos políticos. Ele combina um substantivo, “Sul”, com um adjetivo, “global”, ou, às vezes, com o adjetivo “profundo”. Na maioria das vezes, essa junção é empregada como algo bastante evidente e natural. Mas com que pertinência? Os autores que a empregam o fazem em geral sem uma definição prévia, ainda que considerando as consequências previsíveis de seu emprego ao tratarem de assuntos de interesse mundial. As contribuições que vêm sendo publicadas a esse respeito mostram tanto a extensão do emprego dessa expressão quanto as incertezas associadas ao seu uso, que, paradoxalmente, os autores reconhecem.

No texto “Le Sud global, d’objet à sujet de l’ordre international”[4] [O sul global: de objeto a sujeito da ordem internacional], Shiv Shankar Menon, um diplomata indiano, expõe os limites científicos de um conceito que ele valida devido à sua forte capacidade de mobilização, contestando os críticos anglo-saxões a esse respeito, embora ita sua natureza imprecisa. O conceito está “cada vez mais na moda”, diz ele, embora seja “um termo vago […] que evoluiu com o tempo”. “Portanto, é difícil”, acrescenta o autor, “ser preciso usando um conceito impreciso, não muito rigoroso”. Isso porém não o impede de justificar a relevância do termo, em nome de suas virtudes políticas. Em sua opinião, a existência de um “poder global” em nível mundial deve levar os atores periféricos e dependentes a inventar novas estratégias que lhes permitam participar da tomada de decisões. A fórmula “Sul global” incorpora “valores que desafiam a ordem internacional ocidental”; “resta saber”, conclui ele, “se essas estratégias conseguirão se firmar […] dadas suas muitas variações e mudanças de direção[5]”.

A maioria dos que discutem a relevância dessa terminologia “Sul global” ou “Sul profundo”, embora reconheçam sua incapacidade de dar uma definição clara, afirmam, tal como o embaixador indiano, que a empregam por necessidade militante. A associação dessas duas palavras, “sul” e “global”, é justificada por seu poder polarizador e por seu potencial cristalizador, enquanto expressão. O cientista político francês Bertrand Badie resumiu perfeitamente a tensão em torno do conceito na primeira frase de um de seus livros sobre o assunto: “A vez do Sul”, escreveu ele, “global ou não, chegou? [6]”. E o autor continua “por enquanto, o Sul está fazendo e refazendo o mundo[7]”.

Não estamos aqui questionando a realidade de um concerto internacional que divide dominantes e dominados. Estamos questionando a validade do conceito de “Sul global” em oposição ao conceito de “Norte global”, que pressupõe a existência de blocos homogêneos no Norte e no Sul, com interesses e estratégias coordenadas. Será que esses qualificadores normativos supostamente naturais, que não precisariam ser confrontados com a realidade, não correm o risco de serem superados pela complexidade e brutalidade de um mundo que está girando como uma bola de rúgbi americana?

Digressão sobre os riscos de interpretações errôneas

A digressão, entendida como o reinvestimento da complexidade da realidade, é praticada por escritores que não hesitam em romper com um estilo narrativo excessivamente linear e previsível. O acadêmico francês Dany Laferrière, de origem haitiana, justificou a digressão literária em “Journal d’un écrivain en pyjamas”[8] [Diário de um escritor de pijamas]. O uso desse artifício literário nos permite, em outro campo, refletir sobre a “liquidez” – que pode ser entendida como elusiva, vaga, sem forma – de várias expressões geopolíticas, tal como “Sul global”.

Uma retórica racional pode ser tendenciosa ao manipular a etnologia, a história, a psicanálise e a sociologia para fins comerciais ou partidários? A indefinição de palavras e conceitos pode facilitar a apropriação indevida do significado? Existem fatores de risco que favorecem esses desenvolvimentos, como as palavras polissêmicas, as retóricas da persuasão, o totemismo linguístico, a eufemização do vocabulário, a apropriação indevida do significado, a substituição do vocabulário por nomes anglo-americanos?

Uma palavra tão simples como “Panamá”, por exemplo, é polissêmica. Ela faz referência, ao mesmo tempo, a um país da América Central, a um canal interoceânico, a um chapéu e a um acordo financeiro. A palavra Panamá foi usado pela primeira vez para descrever uma província colombiana que foi separada pelos Estados Unidos em 1903; o canal foi construído e monopolizado pelos Estados Unidos de 1903 a 1999; sua restituição aos panamenhos foi novamente ameaçada por Washington em 2025 [9]. O chapéu, conhecido como “panamá”, e que na verdade foi fabricado no Equador, foi popularizado em 1913 por Theodore Roosevelt, então ex-presidente dos Estados Unidos, que foi o “inventor” da independência do Panamá e o responsável pela espoliação do canal. Panamá também é o nome de um dos grandes escândalos financeiros da Terceira República sa. Esses diferentes significados permitem combinações, jogos argumentativos e armadilhas linguísticas.

Quando se trata eventualmente de convencer alguém, seja um amigo, um adversário ou um concorrente, frequentemente abandonamos o exercício argumentativo de convicção em favor de um exercício estritamente retórico de persuasão desprovido de substância. A argumentação, ou o que toma o lugar da argumentação, assume então uma dimensão religiosa em vez de racional. A manipulação do discurso e das emoções pela propaganda política, religiosa e comercial tem sido objeto de várias e de relevantes obras [10].

As palavras, como elementos constitutivos dos discursos, também são afetadas por essas derivas. Algumas assumem uma dimensão totêmica que introduz a polissemia. O novo significado atribuído ao termo assume, então, o valor de verdade sem que nenhuma justificativa seja considerada necessária. Estudos em linguística política lançaram luz sobre as variações e mutações linguísticas que foram impostas aos alemães pelo regime nazista[11]. Mas, como outros estudos mostraram, um novo significado é adicionado aos significados anteriores, criando uma confusão que exige esclarecimento normativo. Na época da reunificação, a existência de dois tipos de alemão – um liberal, falado na República Federal da Alemanha (RFA), e outro comunista, falado na República Democrática Alemã (RDA) – levou à criação de um dicionário para ajudar as pessoas a mudarem de um vocabulário para o outro [12].

Os regimes democráticos também são afetados pela eufemização da linguagem, que enfraquece seu escopo e conteúdo. O pesquisador francês David Colon deu alguns exemplos disso em seu livro sobre propaganda[13]: “desde a década de 1990 [na França], vem se desenvolvendo um campo semântico que descarta o vocabulário da democracia em favor do vocabulário da istração. Não falamos mais de “povo”, mas de “sociedade civil” […], de “trabalhadores”, mas de “capital humano”, de “sindicatos”, mas de “parceiros sociais” […], de “desempregados”, mas de “candidatos a emprego”.

O jornalista Selim Derkaoui e o sociólogo Nicolas Framont, ampliando a análise, descreveram esse estado do vocabulário como uma “guerra de palavras” [14]. Eles acrescentaram o surgimento da expressão “charges patronales” [encargos do empregador] no lugar de “cotisations sociales” [contribuições para a seguridade social] à essa lista de deslizamentos lexicais e semânticos – um claro reflexo, na opinião deles, da “linguagem burguesa”.

A substituição de palavras domesticadas por termos anglo-americanos, às vezes ou inicialmente mal compreendidos, permite frequentemente o abuso da linguagem e várias formas de trucagem, o que Alex Grijelho, um crítico literário espanhol, chama de “motif de toujours: paraître plus moderne et croire que on nomme quelque chose de nouveau”[15] [o mesmo de sempre: para parecer mais moderno se nomeia novamente]. O “inglês”, explica um sindicalista da Alcatel-Lucent, “tal como se diz hoje, é a língua do mundo corporativo por excelência, mas alguns gerentes não sabem sequer o significado dos termos que empregam” [16]. Na França, a palavra “black” é uma forma de falar dos negros de modo a apagar o ado colonial. “Ela tem a vantagem de não remeter […] a um período da história coletiva sa […]. É usada por políticos, na mídia, na publicidade, na literatura […] para suavizar a comunicação”, conforme escreveu no jornal Libération, “um francês de origem caribenha que cresceu em Toulouse” e que conclui: “Não sou black. Sou francês” [17].

Dependendo da orientação de um governo ou de outro, de um partido político ou de uma igreja, certas palavras aparentemente neutras de origem científica também foram desviadas de seu significado original. Termos que historicamente tinham um significado negativo foram usados de forma abusiva para condenar ou demonizar um oponente. Na direita, a esquerda democrática é descrita como “comunista”, “populista”, “socialista”, “coletivista” e, na América Latina, como “bolivariana”. O adjetivo demoniza o outro sem a necessidade de apresentar qualquer argumento racional. Na esquerda, os termos “fascista”, “genocida”, “nazista” e “populista” são usados com a mesma intenção de demonizar as direitas, especialmente a extrema direita.

Originalmente, cada uma dessas palavras tinha uma definição clara. Esses termos perderam muito de seu significado científico e histórico por terem sido usados e abusados de forma tão polêmica. O historiador argentino Federico Finchelstein aponta que esses termos foram “despojados de seu significado histórico” para designar o “mal absoluto” [18]. Ele demonstra isso em um pequeno parágrafo de um de seus livros: “Após a anexação da Crimeia […] as autoridades russas justificaram que a Ucrânia era o resultado de um golpe de Estado fascista. Hillary Clinton, então Secretária de Estado, comparou o ato de Vladimir Putin ao que “Hitler havia feito na década de 1930” […] Nicolas Maduro usou a ameaça do fascismo para justificar prisões […]. Em 2017, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan descreveu a Europa como fascista e cruel […]. Da Argentina aos Estados Unidos, governo e oposição se chamam mutuamente de “fascistas”. Donald Trump, no início de seu primeiro mandato, acusou as agências de notícias de práticas nazistas”.

O “Sul profundo”, ou “Sul global”, está em vias de entrar em uma das categorias de palavras de ordem pseudocientíficas usadas para fins comerciais ou partidários? Para todos os seus usuários, o conceito é vago e maleável. Com o ar do tempo, com a controvérsia e o debate, será que ele não se transformou de termo indefinido em uma palavra, para dizer o mínimo, clivada e deliberadamente divisiva?

 “Sul global”: o que se designa com esse termo?

O que é o Sul na geografia política e na geoeconomia? O “Sul” é definido, antes de mais nada, em oposição ao “Norte”. Na geoeconomia, os países desenvolvidos da Europa e da América do Norte são chamados de “Norte”, enquanto os países em desenvolvimento da África, América Latina e Ásia são chamados de “Sul”. Geopoliticamente, ela coloca de um lado aqueles que são considerados os líderes mundiais contra aqueles que são forçados a aceitar suas diretrizes.

No entanto, os limites entre esses dois grupos são incertos. Em um livro que explora o significado comum dado à “distinção entre Norte e Sul”, o economista e filósofo Xavier Ricard Lanata aponta que essa distinção “não tem origem histórica indiscutível”[19]. Outros termos foram inventados para competir com ela, embora estejam localizados em campos significativos que não se sobrepõem absolutamente. Eles contrastam países desenvolvidos e subdesenvolvidos (ou países em desenvolvimento); mundo ocidental desenvolvido e mundo comunista, terceiro mundo e países não alinhados; ou simplesmente ocidentais e comunistas. De acordo com Xavier Ricard Lanata, é “mais do que um conceito geográfico, é uma metáfora”[20], colocando os espaços dominados, na maioria das vezes ex-colonizados e, portanto, inicialmente os países do Sul, comportando africanos, centro e sul-americanos e asiáticos, contra as antigas potências coloniais, europeias, e as economias capitalistas dominantes.

Mas já existem ressalvas que invalidam essa metáfora geográfica. O mesmo autor ressalta que há Sul no “Norte”. Basta pensar nos “habitats” cada vez mais fechados onde vivem populações privilegiadas europeias e norte-americanas, estudados na França por Michel Pinçon [21] e Monique Pinçon-Charlot, e nas áreas mais ou menos abandonadas pelo Estado, nos arredores das grandes cidades (como na França são os distritos do norte de Marselha) e no campo, nas zonas intermediárias entre os grandes centros urbanos – terra dos “gilets jaunes” [coletes amarelos], observados de perto pelo geógrafo e ensaísta Christophe Guilluy [22]. Xavier Ricard Lanata conclui: “Há alguns anos, o Norte parece estar se deslocando para o Sul”.

Quanto ao “Sul”, continua o filósofo, “ele se fragmentou como resultado da […] globalização”. Um número significativo de países asiáticos é considerado uma potência econômica, comercial e financeira: China, Coreia do Sul, Japão e Taiwan. A esses, às vezes, podemos acrescentar os Novos Países Industrializados (NICs), membros da ASEAN: Indonésia, Malásia, Cingapura, Tailândia e Vietnã. Eles ainda seriam “Sul”? Em 1999, foi criado o G20, um diretório composto das 20 maiores economias do mundo.

Vários países da África, Ásia e América Latina são membros do G20, que compreende também os membros do G7, composto pelas 7 maiores economias do mundo [23]. O Conselho de Segurança da ONU inclui permanentemente representantes de todos os continentes [24]. É verdade que cinco de seus membros são permanentes e têm o direito de veto. Mas entre eles, juntamente com os Estados Unidos, a França e o Reino Unido (“Norte”), encontram-se a China e a Rússia, que são membros do grupo BRICS e que, por vezes são integrados ao “Sul global”. Essas alianças entre países e regiões também podem incluir países do “Norte” e do “Sul” em busca de um objetivo compartilhado. O G4, formado em 2005, combina a diplomacia de dois países do “Norte”, Alemanha e Japão, com a de dois países do “Sul”, Brasil e Índia, e reúne também quatro países com grandes PIBs que buscam se tornar membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

A complexidade das fronteiras entre essas áreas é tamanha que um pesquisador argentino de relações internacionais, o professor Juan Gabriel Tokatlian, propôs dividir o Norte em dois grupos: o Norte 1, formado pelos aliados dos Estados Unidos, e o Norte 2, que reúne os países desenvolvidos e os NICs, amigos da China [25]. Essa divisão, que era adequada em 2024, continua ainda sendo hoje em dia, após o anúncio de uma reaproximação entre Washington e Moscou?

A fórmula de um “Sul” global em oposição a um “Norte” não é tão universal quanto parece. Dependendo da conveniência de quem emprega o conceito, os limites do “Sul” global podem se expandir a ponto de torná-lo cientificamente incompreensível. O “Sul” pode, portanto, dependendo das necessidades retóricas, incluir vários países desenvolvidos ou NICs do hemisfério norte, a China, a Rússia e a Turquia.

Outras expressões, com perímetros diferentes, são usadas em paralelo, do ponto de vista geoeconômico, como a inventada pelos economistas da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL) na década de 1960, que contrasta países ditos centrais com os países ditos periféricos [26]. Durante a Guerra Fria, havia também um “Terceiro Mundo”, fora do mundo ocidental sob a tutela dos Estados Unidos e fora do mundo comunista sob a liderança soviética. Dada a natureza militar da divisão, o primeiro estava associado à OTAN e o segundo ao Pacto de Varsóvia. O Terceiro Mundo não se incluía em nenhum dos dois. Ele criou formas de cooperação intergovernamental próprias no âmbito do movimento dos não alinhados.

Acrescentar os qualificativos “profundo” ou “global” ao termo “sul” torna a sua interpretação ainda mais difícil. O que significa “profundo”, “global” e como esse adjetivo pode ser entendido na geopolítica? “Profundo”, define o dicionário francês Le Robert, é algo distante da superfície, ou “difícil de alcançar”. Que superfície deveríamos considerar aqui? Por que ela seria difícil de alcançar? O adjetivo “profundo” não ajuda a esclarecer os perímetros do ‘Norte’ e do “Sul”. Além disso, ele não revelaria, ao acrescentar vagueza à vagueza, uma tentativa de mascarar a diversidade dos desafios de ordem internacional?

Aliança dos manifestantes que se opõem ao mundo à moda ocidental

Além dessas diversidades e da indefinição de fronteiras, há um denominador comum negativo: a recusa em aceitar a perpetuação de uma ordem internacional que constrange os mais fracos e os não ocidentais. Esse denominador de oposição reflete uma realidade diplomática e internacional. Como tal, ele é mais relevante do que a visão de que esses protestos refletem a existência de alianças, frentes e estratégias compartilhadas entre países excluídos, supostamente membros de uma coalizão que pudesse ser nomeada como “Sul global”. Um olhar mais atento à dinâmica internacional validaria a existência de uma série de recusas e rejeições da ordem ocidental, sem que, no entanto, elas constituam um tipo de coalizão que possa ser nomeada como “Sul Global” ou “Sul Profundo”.

As posições tomadas sobre a crise russo-ucraniana, tanto no “Norte” quanto no “Sul”, por exemplo, acentuaram a sobreposição geopolítica entre um “Sul Global” indefinido ou mal definido e um “Norte” que parecia estar bem definido. Em 2022, a Rússia, membro do “Sul Profundo”, de acordo com alguns, invadiu a Ucrânia, que supostamente fazia parte do Norte Ocidental e Central. A violação por parte de Moscou do direito internacional, por princípio um meio que igualaria e protegeria indistintamente todos os países, foi condenada pelo Norte “Central”, pelos Estados Unidos e seus aliados europeus na Aliança Atlântica. Mas essa agressão também foi rejeitada por outros, incluindo a maioria dos estados latino-americanos.

O Norte Central, além de condenar a agressão, impôs sanções econômicas à Rússia. A esse respeito, no entanto, os países latino-americanos que também condenaram a invasão se recusaram a aplicar as sanções promovidas pela OTAN contra a Rússia. Em 2022 e 2023, os três países latino-americanos membros do G20 – Argentina, Brasil e México – estavam na mesma sintonia: condenaram a invasão e se recusaram a aplicar sanções. No entanto, em nenhum momento eles tentaram tomar uma iniciativa conjunta nesse fórum ou na ONU para dar uma dimensão internacional ao seu ponto de vista diplomático. Cuba, Nicarágua, Venezuela, Coreia do Norte (no “Sul”) e Hungria (no “Norte”) se recusaram a condenar a Rússia. A China, supostamente no “Sul”, manteve uma postura compreensiva em relação à Rússia, ao mesmo tempo em que defendia a necessidade de redução da escalada.

Desde que Donald Trump assumiu o cargo, os Estados Unidos então quebraram a unidade do Norte “ocidental” em relação às autoridades ucranianas e, em efeito dominó, a relevância de sua organização militar-diplomática, a OTAN. Washington, até então considerada a capital do campo do “Norte”, foi na direção de Moscou, membro do “Sul Profundo”, ao criticar abertamente as autoridades de Kiev. Na Europa, a Itália sinalizou sua compreensão em relação a Washington. A França e o Reino Unido desejam um engajamento militar europeu na Ucrânia; a Alemanha e a Espanha se recusam a seguir a tendência dos Estados Unidos em direção à Rússia e, também, recusam uma intermediação europeia militarizada ao lado da Ucrânia. Nessa questão internacional, é difícil hoje classificar os países de forma coerente nas categorias “Norte” e “Sul”, pois as posições flutuam muito.

Em termos econômicos e comerciais, a distinção entre “Norte global” e “Sul global” são relativamente mais relevantes. Iniciativas conjuntas foram tomadas entre grupos de países do Norte e grupos de países do Sul. A União Europeia no Norte expandiu-se no início do milênio. A Área de Livre Comércio da América do Norte foi renovada com um nome diferente em 2018. No Sul, em 2011, a Aliança do Pacífico reuniu quatro países latino-americanos [27], e a Aliança dos Estados do Sahel, em 2023, agrupou três países da África Subsaariana [28]. O grupo BRICS, um acordo transcontinental entre africanos, asiáticos e latino-americanos, expandiu-se geograficamente entre 2009 e 2024 [29]. No entanto, quando o presidente Donald Trump assumiu o cargo, houve novo embaralhamento das cartas. Ele rompeu a coerência do T-MEC e da Aliança Atlântica e, consequentemente, a unidade dos chamados países centrais ou ocidentais. No Sul, as mudanças mais significativas foram iniciadas pela China em 2013 com a Nova Rota da Seda e o grupo BRICS, cujo centro financeiro encontra-se em seu território.

Em menor escala, os atores dominantes (China, Estados Unidos e Rússia) estão conduzindo a bola internacional, mobilizando um país ou um grupo de países conforme as circunstâncias. No decorrer desses confrontos, surgem disputas. Mas elas não têm relevância a longo prazo. Elas não consolidam nem validam a polarização entre o “Norte” e o “Sul”, seja ela ‘global’ ou “profunda”. O que resta é um vento de protesto contra a ordem mais ou menos multilateral construída após a Segunda Guerra Mundial, alimentado por diferentes ventos que sopram de diferentes partes do globo, de acordo com as circunstâncias. Por todas essas razões, o recurso ao conceito de “Sul profundo” ou “Sul global”, assim como termos relativos a outras ideologias e paradigmas políticos importantes (comunismo, fascismo, genocídio), sob uma aparência científica, equivale antes a uma palavra de ordem com finalidade militante, e não a um conceito como ferramenta de análise de realidades internacionais.

[1] Texto originalmente publicado em francês, em 02 de abril de 2024, no site da Fundação Jean Jaurès, Paris/França, com o título original: “Mots tiroirs au défi d’une géopolitique liquide : l’exemple du sud profond”. Disponível em: https://www.jean-jaures.org/publication/mots-tiroirs-au-defi-dune-geopolitique-liquide-lexemple-du-sud-profond/. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.

[2] Entrevista com Fareed Zakaria, “Le système construit après 1945 peut survivre en dépit de la défection américaine”, Le Monde, 1º de março de 2025.

[3] Citado em Henri Meschonnic. Ce que Hugo dit de la langue. Romantisme, nº 25-26, 1979, p. 57-73.

[4] Shiv Shankar Menon. “Le Sud global, d’objet à sujet de l’ordre international”. In: Anuário CIDOB 2025, Barcelona, 2024.

 [5] Ibid., p. 21-29.

 [6] Bertrand Badie e Dominique Vidal. L’heure du Sud. Paris: Les liens qui libèrent, 2024, p. 7.

[7] Ibid., p. 19.

[8] Dany Laferrière. Journal d’un écrivain en pyjama. Paris: Grasset, 2013.

[9] Jean-Jacques Kourliandsky. O neoanexionismo de Donald Trump: Doutrina Monroe ou Doutrina Panamá? In: Observatório da Impresa, 10 de abril de 2025. Disponível em: /internacional/o-neoanexionismo-de-donald-trump-doutrina-monroe-ou-doutrina-panama/

[10] Edward Bernays. Propaganda : Comment manipuler l’opinion en démocratie. Paris: La Découverte, 2007; Johann Chapoutot. Libres d’obéir. Paris: Gallimard, 2020.

[11] Victor Klemperer. LTI, the language of the Third Reich. Paris: Albin Michel, 2023.

[12] Birgit Wolf. Sprache in der DDR, Ein Wörterbuch. Berlim-Nova York: De Gruyter, 2000.

[13] David Colon. Propagande: la manipulation de masse dans le monde contemporain. Paris: Berlim, 2019.

[14] Selim Derkaoui e Nicolas Framont. La guerre des mots. Paris: Le ager clandestin, 2023.

[15] Alex Grijelho. E-mail y la pobreza de vocabulario. El Pais/Babelia, 25 de janeiro de 2025.

[16] Declaração de Martine Lamonnier, membro da CGT – Confederação Geral do Trabalho sa, citada por Sébastien Hervieu na notícia “Un collectif contre la colonisation de la langue corporate” [Um coletivo contra a colonização da língua corporate], publicada pelo Le Monde em 10 de fevereiro de 2007.

[17] Declaração de Fabrice Xavier, publicada em texto do jornal Libération de 20 de novembro de 2006.

[18] Federico Finchelstein. Del fascismo al populismo en la historia. Buenos Aires: Taurus, 2019, p. 25.

[19] Xavier Ricard Lanata. La tropicalisation du monde : Paris: PUF, 2019, p. 19.

[20] Ibid.

[21] Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot. Les ghettos du gotha. Comment la bourgeoisie défend ses espaces. Paris: Seuil, 2007.

[22] Christophe Guilluy. Fractures françaises. Paris: Flammarion, 2010.

[23] África do Sul, Índia, Indonésia, Argentina, Brasil, México e os “sulistas” desenvolvidos Arábia Saudita, China, Coreia do Sul, Japão e Turquia.

[24] Os dez membros não permanentes do Conselho de Segurança da ONU em 2025: Argélia, Serra Leoa, Somália, Coreia, Paquistão, Guiana, Panamá, Dinamarca, Grécia e Eslovênia.

 [25] Juan Gabriel Tokatlian. Consejos no solicitados sobre politica internacional: Conversaciones con Hinde Pomeraniec. Madri: Siglo XXI Editores, 2024.

[26] Raúl Prebisch, Celso Furtado e Fernando Henrique Cardoso, entre outros, inventaram a teoria da dependência.

[27] A Aliança do Pacífico é formada por México, Colômbia, Peru e Chile.

[28] Burkina Faso, Mali e Nigéria.

[29] Países fundadores: Brasil, China, Índia, Rússia (2009), depois África do Sul em 2011 e, em 2024, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Indonésia e Irã.

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Jean-Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos com sede na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).