Leitores e espectadores atentos, entre eles muitos jornalistas e estudantes de jornalismo, presenciaram nos últimos dias um grande caso de não-notícia com o blá-blá-blá sobre a primeira-dama Janja e sua suposta ofensa, nunca confirmada, ao presidente chinês, Xi-Jinping.
Recapitulando rapidamente, Globonews, Folha et al noticiaram que Janja teria causado “climão” durante jantar oficial na China, ao comentar os efeitos nocivos da rede social TikTok sobre crianças e mulheres. Deste boato, seguiu-se uma cobertura intensiva, desdobrando a façanha da primeira-dama, a bronca de Lula sobre o vazamento de uma conversa a portas fechadas, o jogo de adivinhação para saber quem na comitiva brasileira teria aberto o bico.
Gosto da Folha. Encontro bons textos no jornal, que seguem um hoje raro padrão de bom jornalismo, reunindo frequentemente boa apuração, bom texto e boa edição. Por isso mesmo esta cobertura chamou minha atenção. “Coisa para a ombudsman analisar”, pensei.
Primeiramente, viu-se o quanto a fofoca suprimiu uma notícia bastante relevante: presidente e primeira-dama do Brasil conversaram tête a tête com o presidente chinês sobre malefícios do TikTok, uma plataforma chinesa. Lula e Janja foram, portanto, reclamar direto “ao dono” (a rede social pertence à empresa ByteDance, porém, na China, um país que elege o presidente por voto indireto, tudo funciona como e se o governo quer).
Acho que aqui vale olhar por um instante para a função da edição no jornalismo. Vejamos uma manchete diferente para a mesma apuração:
“Lula critica TikTok e fala sobre regulação da rede em jantar com Xi-Jinping na China”.
As opiniões da primeira-dama, se relevantes, poderiam entrar em uma linha fina ou no conteúdo do texto, um detalhe a mais dos bastidores. Via de regra, em um jantar com presidentes, vale o que um presidente diz ao outro, correto? E pressionar o assunto TikTok com Xi não é para qualquer um, o fato em si é notícia.
Globonews, Folha et al preferiram o fuxico. Dá clique, rende matérias relacionadas ao “climão”… E queima o filme da publicação, também.
Curiosamente, após um primeiro texto do correspondente em Pequim apurando e revelando o episódio, em matérias seguintes a Folha ou a creditar a fofoca ao G1/Globonews, como quem diz: “Foram eles que começaram.” Pode ter sido apenas um descuido, falta de comunicação interna. Pode não ter sido.
Em meio à “manchete” que ou a pautar a República (a que ponto chegamos), com oposição criticando, diplomatas avaliando, Justiça pedindo exame das viagens de Janja, e inúmeros textos de colunistas separando o machismo e a crítica pertinente a uma mulher, a discussão sobre as redes seguiu ignorada. O TikTok até se colocou à disposição, mas aí veio a morte do Sebsatião Salgado, o PL que enfraquece o licenciamento ambiental… ou.
Um mês antes, uma menina de oito anos morreu em Brasília ao encarar um desafio então popular no TikTok: cheirar desodorante. A Polícia Civil chegou a notificar a rede social, mas para assim poder obter mais informações em sua investigação.
Discutir uma legislação que coloque mais responsabilidade sobre as plataformas, como TikTok, Instagram e Facebook, é procurar um equilíbrio para algo hoje fora de controle.
Enquanto há inúmeras vantagens nas redes, como em ocasiões como a tragédia do Rio Grande do Sul, ou ainda, o impulso para inúmeros pequenos negócios no país, a falta de filtro das redes sociais permite que cidadãos sejam expostos à desinformação, que meninas tenham a saúde mental abalada, que adolescentes sejam vítimas do ódio e inclusive venham morrer em práticas inconsequentes, divulgadas como diversão.
TikTok é uma mídia? Ou é uma empresa de tecnologia? A ByteDance deve seguir a mesma lei que pune um canal de televisão que descumprir sua responsabilidade? São perguntas que poderiam surgir após o jantar de Lula e Xi, mas não surgiram. Veja só você o que uma escolha editorial pela fofoca pode (deixar de) fazer.
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Marco Britto é jornalista, mestrando do PPGJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS