
(Foto: Engin Akyurt/Pixabay)
Reportar abusos, violações de direitos e situações humanitárias extremas é uma responsabilidade de jornalistas, assim como denunciar quais interesses políticos e econômicos são atendidos com uma guerra em determinado território. Coberturas jornalísticas de conflitos armados são essenciais porque permitem à sociedade conhecer os motivos e as consequências de uma guerra ou mesmo ar pontos de vista não-hegemônicos, estabelecendo novas condições de reflexão sobre a realidade.
No entanto, é uma situação de extremo risco para profissionais do jornalismo. De acordo com a Armed Conflict Location & Event Data (ACLED), no ano ado, houve um aumento de 25%, em relação a 2023, quando o assunto é eventos de violência política. O relatório anual da organização Repórteres sem Fronteira destaca a situação de jornalistas que cobrem áreas de conflito armado, ambiente que concentra metade de jornalistas em 2024. Atualmente, pelo menos 550 jornalistas estão em privação de liberdade no mundo.
O relatório de 2024 do Comitê para a Proteção a Jornalistas (J), organismo de atuação internacional, corrobora a tendência: foram assassinados, ao menos, 124 jornalistas em 18 países em 2024. Para J, 2024 foi o ano com mais mortes de repórteres e profissionais de mídia nas últimas três décadas, em especial, pela intensificação do conflito em Gaza.
Ameaças diretas, intimidação e traumas psicológicos são frequentemente destacados por jornalistas e profissionais da mídia nessas coberturas. Em geral, quem reporta são jornalistas das próprias regiões em conflito que precisam operar em condições precárias.
Grandes veículos internacionais também encontram dificuldades de realizar coberturas em zonas de guerra que vão desde o pouco aporte financeiro a impedimentos de entrar em determinadas regiões, além de precisar de apoio local para as coberturas.
Embora seja um trabalho difícil, com sérios riscos de morte e impactos de curto, médio e longo prazo na saúde de jornalistas, a falta de equipes em frontes de guerra acentua as incompreensões sobre o que está acontecendo. Essa impossibilidade favorece pontos de vista hegemônicos e seus ganhos políticos e econômicos com determinada intervenção.
Cobertura do conflito em Gaza
A guerra entre Israel e Palestina, na Faixa de Gaza, é o conflito bélico mais intenso e de maior impacto humanitário na atualidade. No primeiro dia de junho, 31 palestinos foram mortos e 170 feridos enquanto tentavam ar um ponto de distribuição de ajuda em Rafah, de acordo com a Associated Press (AP).
As críticas a Israel e ao extermínio da população palestina têm mobilizado internacionalmente uma série de organizações, intelectuais, jornalistas, artistas do mainstream a um posicionamento pró-Palestina. Até mesmo o secretário da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, manifestou que Gaza é um campo de extermínio de civis.
As dimensões do conflito extrapolam o vivido no território para a batalha de ideias em escala mundial. Para o jornalismo, o desafio é a construção de narrativas a partir de uma disputa de ideias acirrada e articulada a interesses geopolíticos e econômicos, mas que também peram relações culturais, lados opostos em extrema tensão e violência deliberada.
Mohamad Elmasry, professor de Estudos de Mídia no Instituto de Estudos de Pós-Graduação de Doha, publicou o artigo “Como a mídia ocidental favorece Israel no Instagram”, no fim de 2024, com os resultados de uma análise quantitativa de conteúdo, evidenciando que os principais veículos de notícias ocidentais são significativamente mais simpáticos às vítimas israelenses e às violações praticadas por Israel.
Considerando variáveis como fontes, humanização da vítima e enquadramento dominante, foram analisadas mais de 400 postagens do Instagram, incluindo imagens estáticas, legendas e vídeos de veículos como CNN, BBC News, Fox News, MSNBC e Sky News.
“Com base em pesquisas acadêmicas anteriores, antecipei encontrar padrões de cobertura que favoreciam narrativas e posições israelenses. Embora essas expectativas tenham sido confirmadas, a magnitude das disparidades foi substancial e, de muitas maneiras, surpreendente”, afirma Elmasry.
Rita Coitinho, cientista social e doutora em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em entrevista concedida para este artigo, afirma que essa é uma disputa de narrativas desproporcional. Ela argumenta que existe, por um lado, todo um “aparato midiático dos grandes monopólios aliado ao sionismo e, de outro, canais e veículos de notícias que têm uma abordagem mais realista dos acontecimentos”.
Coitinho, que também é comentarista de temas internacionais em veículos alternativos brasileiros, aponta para uma situação de desvantagem da posição pró-palestina nas coberturas jornalísticas da mídia hegemônica internacional. Fontes com ponto de vista de palestino são menos solicitadas, tem suas falas permanentemente interrompidas e sofrem perseguição política, com acusações infundadas de antissemitismo, por exemplo.
Para Jonathan Cook, jornalista britânico com experiência em coberturas sobre conflitos israelo-palestinos, o silêncio sobre a guerra em Gaza está no seu limite. No artigo “Por que o muro de silêncio sobre o genocídio de Gaza finalmente começa a ruir?”, apresenta manifestações de jornais como o Financial Times, que destacou o “vergonhoso silêncio do Ocidente” a respeito da ofensiva de Israel; e como o The Guardian, que expressou em editorial “o receio de que Israel esteja cometendo genocídio”.
Cook critica a postura de setores da mídia e da classe política que “sabem que a morte em massa em Gaza não pode ser obscurecida por muito mais tempo, nem mesmo após Israel ter barrado jornalistas estrangeiros do enclave e assassinado a maioria dos jornalistas palestinos que tentavam registrar o genocídio”.
Assim como Cook, Coitinho corrobora a ideia de limite para a invisibilidade do conflito na mídia hegemônica ocidental. Para a cientista social, não é mais possível negar o genocídio em Gaza, por isso a grande mídia está adotando um novo discurso.
“Estamos vendo um movimento de mudança. Jornalistas importantes estão dando uma carga crítica à cobertura e fazendo perguntas desconfortáveis, ao mesmo tempo, em que autoridades europeias que, até recentemente, acobertavam os crimes de Israel, vêm assumindo um tom crítico”. Ela acrescenta que há um discurso da grande mídia culpando “Netanyahu pela decisão de massacrar o povo, como se fosse uma questão apenas de troca de governo. Sabemos que não é só isso”, reforça.
Coitinho comenta também o papel da mídia independente, centrado em cenas reais, que procura a todo tempo denunciar o caráter colonial e racista da ocupação, evidenciando que não se trata de uma mera repressão ao “terrorismo”, mas um projeto de extermínio da população palestina.
Alguns veículos alternativos brasileiros se destacaram denunciando o massacre em Gaza pelas forças de Israel. The Intercept Brasil, Agência Pública, Carta Capital, Brasil de Fato, Opera Mundi e tantos outros vem buscando realizar um trabalho de cobertura que alerte sobre as atrocidades perpetradas por Israel em território palestino.
A mídia hegemônica brasileira também é alvo de críticas. Para Coitinho, “no Brasil é só silêncio e não existe o mínimo espaço para o contraditório. A Globo News, logo que os bombardeios começaram, ava o dia inteiro cobrindo o tema, trazendo convidados pró-Israel, um após o outro, além de um sem número de acadêmicos que posam de analistas neutros”.
Os supostos discursos de neutralidade dos veículos de jornalismo hegemônico brasileiro, que buscam uma aparência de cobertura ponderada e equilibrada, são frágeis porque a neutralidade é sempre uma blindagem retórica para ocultar uma posição hegemônica.
Uma evidência foi a postura de jornais como Estadão, O Globo e Folha de S. Paulo. Os discursos de neutralidade criticam o presidente Lula por se posicionar sobre a violência de Israel em território palestino. Tentam ridicularizar ou mesmo estereotipar Lula como radical, na defesa das relações diplomáticas com Israel.
Como reflexão fica, mais uma vez, a necessidade de questionar a suposta neutralidade como um referencial para o discurso jornalístico. Um discurso neutro é impossível de se atingir, sobretudo, quando precisamos ter clareza que posições diferentes não tem o mesmo peso quando falamos de atrocidades e caos humanitário.
Neste sentido, a objetividade jornalística é muito oportuna, mas que seja uma objetividade que nos ajude a evidenciar a desproporcionalidade entre os “dois lados”. Na impossibilidade de equivalências a responsabilidade de jornalistas é se posicionar em defesa dos direitos humanos e denunciar a força bélica de Israel e o massacre que acontece em Gaza na atualidade.
Publicado originalmente em obETHOS.
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Clarissa Peixoto é jornalista, Mestra em Jornalismo pelo PPGJor e pesquisadora do objETHOS