Quinta-feira, 12 de junho de 2025 ISSN 1519-7670 - Ano 2025 - nº 1342

A origem dos superpoderes 6m3u55

(Foto: Lula Marques/Agência Brasil)

No contexto da redemocratização, a Constituição de 1988 consagrou como pilares do nosso sistema de governo a soberania popular, a liberdade política e a diretriz de construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Podemos perceber a preocupação dos constituintes com a plena realização da cidadania política, econômica e social, refletida principalmente no rol dos direitos fundamentais, que evidencia a convergência de elementos ideológicos do liberalismo e do socialismo naquilo que se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito. O exercício direto e indireto da soberania popular, que constitui a base da cidadania política, seria a qualidade que, veiculada pelas instituições e pelos institutos previstos no ordenamento constitucional, nutriria de atributos democráticos os órgãos que compõem o governo, em sentido amplo. Essa cidadania democrática, que está nas fundações do sistema de governo previsto (e prescrito) na Constituição de 1988, requer a participação dos cidadãos nos negócios públicos.

Grosso modo, o debate pioneiro que tratou da consolidação de nossas instituições desde a última redemocratização trouxe diagnósticos pessimistas sobre o funcionamento do sistema político brasileiro. As razões apontadas para isso são diversas, sobrepondo-se questões históricas, estruturais, culturais e, sobretudo, institucionais. Quanto a essa última espécie de argumentos, boa parte de nossas mazelas seria atribuída ao arranjo eleitoral. As regras empregadas para traduzir votos em cadeiras no Congresso são alvo de constantes críticas pela permissividade e pelo suposto incentivo ao individualismo dos políticos em detrimento dos partidos. Consequentemente, a reforma eleitoral vem sendo pautada desde então.

Após os sucessivos ataques parlamentares contra a Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil, Marina Silva, durante a Comissão de Infraestrutura do Senado (CI), em 27 de maio de 2025, o jornalista Hélio Schwartsman propõe uma medida que considera bastante salutar: “Aproveito para fazer uma modesta sugestão de reforma política. Sei que é incomum e até meio chocante, mas acho que o país ganharia se os presidentes da Câmara e do Senado fossem escolhidos não ‘𝑖𝑛𝑡𝑒𝑟𝑛𝑎 𝑐𝑜𝑟𝑝𝑜𝑟𝑖𝑠’, mas diretamente pela população. Esses dois cargos se tornaram tão ou mais importantes que o de presidente da República. A eleição direta ao menos impediria que os chefes do Legislativo fossem a expressão de um arranjo dos interesses corporativistas de parlamentares — os mesmos interesses que orientaram o ataque coordenado contra Marina” (Folha de S. Paulo, 30-05-2025).

A reforma política é uma etapa inadiável da consolidação democrática brasileira. Mais do que uma mudança normativa, exige uma transformação cultural sobre o papel dos partidos, a função dos mandatos e a importância do voto consciente. O fortalecimento das instituições representativas depende de regras claras, transparência e compromisso com a vontade popular. O cientista político Jairo Nicolau, estudioso dos sistemas políticos, eleitorais e partidários, observa: “Todo cientista político tem a sua reforma política de estimação”. Essa sentença sugere que as transformações na lógica política são defendidas por diferentes analistas com base em interpretações distintas, por vezes particulares, da sociedade.

Não é preciso ler muitos ensaios — especialmente publicados em jornais, blogs e outros meios mais dinâmicos de comunicação — para perceber que essa máxima se confirma. A questão, no entanto, deve ser conduzida para duas outras frentes. A primeira frente está associada à ideia de que todo brasileiro que compreende o sistema político nacional provavelmente desenvolverá sua própria reforma política de estimação. No entanto, é igualmente relevante considerar uma segunda perspectiva, ligada aos grandes desafios do que se convencionou chamar de reforma política. Esse ponto diz respeito ao propósito real de uma reforma dessa natureza. Onde se deseja chegar? Que valores se está defendendo? Essa reflexão é essencial, pois o que se observa no Brasil são discussões fragmentadas sobre aspectos específicos do sistema eleitoral — debates que muitas vezes ignoram a complexidade do sistema político como um todo.

Convém destacar que o termo “Sistema” carrega uma complexidade que exige atenção especial, pois está atrelado à ideia de que uma mudança em determinada característica pode impactar profundamente diversos aspectos da lógica política, eleitoral e partidária, provocando transformações estruturais e redefinindo relações de poder. O cronista Machado de Assis (1839-1908), com precisão, ressalta: “Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força que este caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras, as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas”. No entanto, como “a nação não sabe ler”, os cidadãos, em sua imensa maioria, “votam do mesmo modo que respiram: sem saber por que nem o quê”. Assim, conclui: “A opinião pública é uma metáfora sem base” (Ilustração Brasileira, Rio de Janeiro, 15-08-1876).

A origem dos superpoderes e seus desdobramentos, que continuam a ter efeitos nocivos, geram impactos profundos na sociedade — desde desigualdades no exercício do poder até dilemas éticos sobre sua regulamentação. Se a trajetória constitucional aponta para a construção de um país mais igualitário e justo, torna-se imperativo que os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário transcendam suas disputas imediatas e se comprometam com um esforço genuíno de cooperação. A República não é apenas um conjunto de instituições formais, mas um projeto coletivo que demanda compromisso, diálogo e respeito às estruturas que sustentam a democracia.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Jornalista diplomado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), e autor do livro 𝐌𝐚𝐜𝐡𝐚𝐝𝐨 𝐝𝐞 𝐀𝐬𝐬𝐢𝐬, 𝐜𝐫𝐢́𝐭𝐢𝐜𝐨 𝐝𝐚 𝐢𝐦𝐩𝐫𝐞𝐧𝐬𝐚 (Outubro Edições, 2023-2024). É participante do Coletivo AVÁ, coorganizador do Sarau Marcante e Membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF).