
(Foto:
Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Durante boa parte do século XX, viver a cidade era também viver a noite. Não apenas como faixa horária ou ausência de luz, mas como território simbólico e existencial. A noite era um outro tempo, um outro código, um outro ritmo. Ela pulsava como um espaço-tempo ampliado — onde o trabalho cessava, o corpo ganhava liberdade e o desejo podia se arriscar. Quando o expediente terminava, a cidade abria suas camadas subterrâneas: os becos, os salões, as mesas de bar, os bailes, os encontros improváveis. Era como se, no escuro, a cidade deixasse de ser apenas funcional e assumisse seu papel sensível, contraditório, aberto ao acaso.
A noite era a brecha no cotidiano disciplinado. O intervalo em que os corpos — esgotados da lógica da produção — encontravam respiro, transbordo, experimentação. Onde se perdiam os compromissos e se ganhava, ainda que momentaneamente, um outro modo de estar no mundo: menos controlado, mais errante, mais sensível ao toque, ao ruído, ao improviso. Na noite, o tempo não era mais metrônomo do capital. Era tambor do encontro, sopro do delírio, cadência da festa e da fuga.
As cidades — especialmente as grandes metrópoles — se firmaram sobre essa promessa. Não dormiam. Ofereciam luz artificial em abundância, rotas abertas, festas infindáveis, esquinas acesas. “Aqui a cidade não dorme”, repetia-se em campanhas publicitárias, em filmes de neon e fumaça, em vitrines que brilhavam mais à meia-noite do que ao meio-dia. Mas o que parecia liberdade era, em muitos casos, apenas uma nova face do controle: a liberdade de consumir, de produzir, de performar sem parar. A lógica 24/7, vendida como símbolo de vitalidade e juventude eterna, escondia em sua base o prolongamento da exploração, a anulação do descanso e a colonização do próprio tempo do prazer.
Essa mesma noite — efervescente, imprevisível, coletiva — começou a ser desmontada. Um apagamento lento, quase imperceptível, mas progressivo. O ciclo da madrugada como espaço de convivência, ritual e dissidência foi sendo diluído por múltiplos fatores: gentrificação dos centros urbanos, precarização da vida, vigilância exacerbada, precariedade da mobilidade. Clubes históricos foram fechando, primeiro por pressão imobiliária, depois por norma sanitária, por falta de público, por medo da rua. O que era lugar de expressão virou ruína ou estacionamento. As festas encurtaram. As interdições se multiplicaram. O improviso foi substituído pelo agendamento, pela política da reserva, pelo protocolo de segurança.
As saídas noturnas tornaram-se raras — e mais caras. Ir para a rua, que já foi direito e necessidade, tornou-se privilégio ou perigo. Hoje, antes de sair, faz-se conta. O desejo virou cálculo. Quanto custa sair? Qual o preço da entrada, da bebida, da corrida de volta? Que horas fecha o metrô? Como se proteger no trajeto? O que antes era impulso, agora exige planilha emocional.
Como voltar sem se arriscar? Com quem estou seguro? Qual aplicativo me garante que não vou me perder, não vou ser assaltado, não vou ser confundido com uma ameaça? O desejo, que antes fluía entre o bar e a pista, entre o olhar e a palavra, agora atravessa uma série de barreiras — econômicas, morais, digitais. Até mesmo o afeto foi higienizado, geolocalizado, enquadrado por filtros.
A noite deixou de ser o tempo da descoberta e ou a ser o tempo da prevenção. Do trajeto mapeado. Da companhia controlada. Da volta antecipada. E assim, pouco a pouco, a madrugada foi sendo vencida não pelo sono, mas pela lógica do medo e da eficiência.
O medo circula mais que os corpos
A insegurança pública se tornou protagonista silenciosa das escolhas cotidianas. Ela dita trajetos, horários, roupas, companhias. Já não se trata apenas de decidir se vale a pena sair, mas se é seguro existir naquele espaço e naquela hora. A cidade, que deveria ser direito de todos, tornou-se território para muitos — e ainda mais para algumas. O corpo feminino, LGBTQIA+, racializado, periférico — historicamente violado e negligenciado — agora se protege antes mesmo de desejar. O desejo precisa pedir licença ao medo.
Antes de sair, escolhe-se o tênis mais discreto, compartilha-se a localização com alguém de confiança, calcula-se o preço do Uber antes de aceitar o convite, limita-se o álcool para manter a vigilância, analisa-se a rota, evita-se o escuro. Sair virou exercício de geopolítica íntima. A experiência noturna, que um dia foi celebração e liberdade, virou um extenso protocolo de autoproteção.
A festa, que já foi espaço de resistência e comunhão, foi sequestrada pela lógica da sobrevivência. Não há mais espaço para o improviso quando o risco é constante. A cidade deixa de ser horizonte e vira obstáculo. E assim, a noite se torna um lugar onde o desejo se submete à estratégia. Onde a espontaneidade cede lugar ao cálculo. Onde o prazer precisa estar constantemente em negociação com o medo.
E não é apenas o medo que afasta. É também a desigualdade que exclui. Sair de casa para dançar, beber, conversar, encontrar — virou privilégio. A precarização do trabalho, a intensificação da jornada, a informalidade crônica e a lógica onipresente das plataformas corroeram o tempo livre. A noite, que era pausa, foi engolida pelo esgotamento. A vida foi comprimida em turnos, e o lazer virou luxo.
Sair custa caro. A tarifa do transporte consome boa parte do salário. A mobilidade urbana, já insuficiente de dia, é quase inexistente de madrugada. A comida, gourmetizada, perdeu o caráter popular. A bebida, elitizada, foi para o cardápio da ostentação. O ingresso, que antes era o o à festa, tornou-se barreira de classe. A cidade que outrora oferecia espaços de encontro, agora oferece filas VIP, lista de convidados, open bar com dress code. A festa virou palco de exclusão, e muitas vezes, vitrine para redes — mais performance que presença, mais exibição do que celebração.
O que deveria ser espaço de descompressão se converteu em extensão das pressões do dia: mostrar-se bem, produzir imagem, manter controle, evitar conflito, parecer feliz. A noite foi colonizada pelo capital simbólico das redes sociais e pela moral da estética publicável. Até mesmo o prazer precisa ser instagramável.
Nesse cenário, o corpo que ousa permanecer na rua carrega sobre si múltiplos níveis de resistência. Estar presente é, para muitos, um ato político. E mesmo o simples gesto de dançar exige coragem. O que era cotidiano virou transgressão. E o que era coletivo, virou exceção.
O afeto virou algoritmo
Enquanto isso, silenciosamente, as relações se deslocaram para o digital. O que antes exigia presença, olhar, escuta e tempo, agora se comprime em telas, toques e deslizes. O desejo — que já foi errância, acaso, encontro — ou a ser mediado por curadorias algorítmicas, por sistemas que transformam o afeto em dados, o flerte em estatística, o corpo em perfil.
A experiência amorosa e erótica foi redesenhada sob a lógica da interface. A festa foi substituída por notificações. O bar virou janela de chat. O olho no olho deu lugar ao selfie estratégico. A conquista, que demandava coragem e descomo, agora é mediada por aplicativos que prometem conexão, mas oferecem catálogo. Swipe, match, ghost. O vocabulário do amor também foi plataformizado.
O flerte, que antes era tropeço, riso, aproximação tímida, deslocamento pelo território do outro, agora é uma performance de si. Um jogo de exposição e controle. Perfil bem escrito, fotos milimetricamente editadas, bio afiada com o equilíbrio exato entre charme e assertividade. Cada gesto calculado sob a lente do marketing pessoal. Vende-se uma versão de si para que o outro deseje aquilo que se promete, e não aquilo que se é.
Nessa vitrine infinita, onde todos são produtos e consumidores ao mesmo tempo, o desejo foi indexado. Medido por curtidas, validado por engajamento, ranqueado por algoritmo. Não se ama mais: avalia-se. Não se conversa mais: negocia-se impressões.
E mesmo com tantas plataformas, com tantos meios de contato, com a promessa de alcance global — nunca fomos tão solitários. Estamos todos mais “conectados”, é verdade. Mas essa conexão nem sempre é presença. Muitas vezes, é só ruído. Conectados, sim — mas cada um do seu quarto, da sua bolha, da sua performance. Cada um no espelho de si mesmo, esperando que alguém toque a superfície e diga: “eu vejo você”. Mas a tela não vê. A tela reflete.
E é possível ar horas deslizando por centenas de rostos, sem jamais tocar um corpo. A tecnologia nos deu o a todos, mas aproximação com poucos. Nos expôs ao outro, mas nos afastou da presença. Nos ofertou o controle, mas nos furtou o mistério.
E talvez seja por isso que, em meio a tantos matches e seguidores, ainda falte o essencial: o tempo do encontro, o cheiro do acaso, a dança do inesperado. Aquele que nenhuma plataforma consegue simular. Aquele que só acontece quando se está — verdadeiramente — diante do outro, com tudo o que escapa da tela: a hesitação, o toque, o tremor.
A madrugada, que era do coletivo, virou do eu
No lugar do coletivo, o íntimo. No lugar da rua, a tela. No lugar da multidão, o isolamento em rede. As ruas, antes ocupadas por corpos diversos, por encontros improváveis, por ruídos sobrepostos, agora ecoam ausências. As novas gerações, nascidas sob o signo da hiperconectividade e do colapso ambiental, econômico e emocional, aprenderam a desconfiar do espaço público. Aprenderam a se preservar. Socializam mais no digital do que nos espaços físicos. Constroem suas redes em servidores, não em esquinas. Preferem consumir em casa, encontrar-se em grupos pequenos, manter a introspecção como escudo e escolha.
Há nisso um gesto ambíguo: ao mesmo tempo gesto de cuidado e gesto de defesa. Um modo de existir que recusa o tumulto, mas também renuncia ao acaso. Um modo de estar que desconfia do mundo, mas que, por isso mesmo, sobrevive a ele. E há uma estética muito própria que se formou nesse novo regime de sensibilidade: a balada silenciosa com fone de ouvido, o encontro sóbrio com hora marcada, a festa que termina antes da meia-noite. A embriaguez, agora, é da imagem — não do corpo. A presença, medida em tempo de tela. A liberdade, calculada entre os stories e os horários do metrô.
O que pode parecer autocuidado também é uma forma de luto silencioso. Dormir cedo é, de certa forma, recusar o mundo como está. É recusar o barulho sem sentido, a velocidade sem direção, o excesso sem profundidade. É um gesto de proteção diante da cidade que cansa, que expulsa, que fere. Mas também pode ser sintoma de rendição: quando a esperança de reinvenção se recolhe junto com o corpo. Quando o refúgio se transforma em clausura. Quando o íntimo deixa de ser abrigo e se torna prisão.
E, nesse novo pacto de retração, algo se perde — mesmo que discretamente. Porque quando não se vive a noite, quando se abre mão do território da rua, quando a cidade silencia antes da meia-noite, o que desaparece com ela não é só o ruído. É também o imprevisto. O tropeço que vira conversa. O barulho que vira dança. O corpo que vira ponte. O encontro que vira história.
A cidade que se recolhe cedo demais se priva do que ela tem de mais essencial: o outro. E no escuro, o que deveria ser mistério vira medo. E o medo, pouco a pouco, ocupa todos os espaços — até mesmo o da possibilidade.
A política do encontro foi adiada
A noite sempre foi mais do que intervalo entre dois dias. Ela foi espaço de experimentação política, de existência expandida, de invenção de formas outras de vida. Foi nas frestas da madrugada que emergiram corpos que transbordavam das normas, desejos que escapavam das moralidades, vozes que não encontravam lugar à luz do dia. A noite abrigava o dissenso, o improviso, o erro como método, a embriaguez como crítica, o corpo como manifesto.
Ali, no calor da pista, no escuro das vielas, no tumulto dos bares populares, a cidade se tornava mais porosa, mais mista, mais plural. Era na madrugada que a rigidez urbana se dissolvia, ainda que brevemente. A madrugada era a brecha onde a cidade se desorganizava — e, ao mesmo tempo, se reconhecia.
Foi na noite que se ensaiaram revoluções, se tramaram fugas, se criaram linguagens. O samba nasceu da noite. A cena queer se consolidou na noite. As festas negras resistiram na noite. A batucada de corpos dissidentes fez da madrugada sua casa. E nesse espaço instável, frágil e pulsante, fundava-se o comum: aquele que não nasce da regra, mas do encontro.
Quando a madrugada se dissolve — seja por medo, por cansaço, por hipercontrole ou por exaustão — esvazia-se também o comum. A cidade perde seu espaço de respiro. De partilha não programada. De contato sem mediação. De ruído que perturba o silêncio opressor do dia.
Ganha-se, é verdade, em segurança. Dorme-se mais cedo. Reduzem-se os riscos. Mas perde-se em liberdade. Porque o controle, mesmo que venha disfarçado de cuidado, sempre cobra seu preço. E o preço, nesse caso, é o enfraquecimento do coletivo. A perda do improviso. O desaparecimento do acaso.
O novo som da cidade é o silêncio
Hoje, as metrópoles amanhecem caladas. As ruas que antes sussurravam promessas até tarde agora se recolhem cedo, como quem desiste de esperar. Dormem antes do desejo, apagam as luzes antes do cansaço. O silêncio não é mais uma pausa — é a nova trilha sonora da cidade. E no ruído seco das notificações, nas telas acesas antes da aurora, a cidade parece menos cidade — mais simulacro do que encontro, mais interface do que corpo.
Não se trata apenas de uma mudança de hábito, de uma nova rotina urbana. Trata-se da instalação de um novo regime de sensibilidade, de uma mutação afetiva e política do espaço-tempo em que existimos. Uma outra forma de subjetivação urbana, em que o comum se torna ruído, o risco vira falha, e a presença — inconveniente. Uma era que amanhece antes da hora, onde a madrugada deixou de ser rito e ou a ser ameaça. Onde o inesperado é evitado, e o improviso, temido.
A madrugada, que já foi território de invenção coletiva, foi reconfigurada como zona de alerta, hora morta, intervalo improdutivo a ser suprimido. Hoje, o tempo é colonizado pela eficiência: dorme-se para render, acorda-se para produzir. Até o descanso deve ser otimizado. Até o sono virou disciplina. E a noite, com seu tempo elástico, seus desvios e seus desvãos, não cabe mais nesse mundo que exige desempenho mesmo no escuro.
E nós — que crescemos aprendendo que o mundo estava lá fora, sob a luz dos postes, no barulho das esquinas, nos gestos cruzados na calçada — agora aprendemos a nos esconder. Dentro dos nossos quartos, das nossas playlists, dos nossos algoritmos, das nossas próprias bolhas de conforto. A rua virou perigo. O outro virou ameaça. O toque virou risco. O erro virou exposição.
A nova madrugada é íntima, asséptica e digital. Cada um na sua cama, no seu fone de ouvido, na sua série personalizada. Cada um diante de uma tela que promete companhia, mas entrega reflexo. O espaço público foi privatizado pela rotina. A cidade, redesenhada para a solidão produtiva. Até a insônia virou hábito, e o cansaço, identidade.
É…
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Richardson Pontone é comunicador social, professor e documentarista. Leciona para os cursos de Comunicação Social – Publicidade e propaganda e jornalismo da Universidade do Estado de Minas Gerais – Unidade Divinópolis.